A quimérica e imponderável busca do tempo Perdido – Sérgio Agra

Sergio Agra

A QUIMÉRICA E IMPONDERÁVEL BUSCA DO TEMPO PERDIDO

Por Sergio Agra

“Os paraísos perdidos
estão somente em nós mesmos.”
Marcel Proust

Quando migramos para Capão da Canoa num nem tão remoto, porém ventoso — como invariavelmente são os seus dias — novembro, vislumbrei da sacada do sexto andar do então único prédio de apartamentos da larga avenida o casario que se estendia até o oceano. A rua da minha nova morada exibia o passeio sem calçamento e um quase inatravessável matagal no canteiro que separava as duas vias de trânsito de automóveis. Ao amanhecer, toda a extensão do apartamento era docemente iluminada pelo sol que explodia sobre as águas oceânicas na sua linha do horizonte.

Na noite última do ano refestelei-me na varanda degustando um espumante de generosa safra e em curiosa e pueril expectativa do encontro dos ponteiros do relógio na hora da meia-noite anunciando 2007 com o festival de fogos de artifício que aconteceria no largo do antigo Baronda. Os Bouquês de Estrelas, asChuvas de Estrelas, asChuvas de Ouro, asEstrelas Douradas, osChorões, asEstrelas Prateadas, osRabos de Pavão que se desenhariam e haveriam de alumbrar o obscuro véu do céu noturno certamente resplandeceriam também em meu espírito.

Pouco a pouco, a luminosidade desses amanheceres testemunhou a sanha, a ganância, o assédio e o poder do dinheiro dos incorporadores — os quais jamais aceitaram ouvir um “não” —, que foram chegando sorrateiros e se instalaram feito uns posseiros em cada uma de todas aquelas casas. À exceção de uma: a de Dona Margarida.

E quem por ali passasse, apreciando do meio da rua a demolição, era tomado por intensa tristeza a cada telha arrancada, a “cada táuba que caía e que doía no coração” do homem desesperançado a maldizer: — “Si o senhor não está lembrado Dá licença de contá Que aqui onde agora está Esse adifício alto Era uma casa velha um palacete assobradado”.

“Em nome do progresso!”, é a senha dos gafanhotos que devastam a história de uma cidade. Capão da Canoa não é diferente de Porto Alegre, de Rio de Janeiro ou mesmo de São Paulo, onde ricas e tradicionais famílias — que “sustentavam” as colunas de Ibrahim Sued, Zozimo do Amaral, Ovadia Saadia, Paulo Raymundo Gasparotto— ou tiveram seus herdeiros em litigiosa e interminável partilha ou assistiram à traumática falência de seus empreendimentos a ponto de não mais possuírem cacife para a manutenção de seus suntuosos palacetes e mansões nos bairros nobres de suas cidades.

A Rua Padre Chagas e adjacências, onde se localiza a famosa Calçada da Fama, no Bairro Moinhos de Vento, exibe horrendos tapumes que encobrem sobrados onde vicejavam glamorosas cafeterias ou choperias para que ali sejam erguidas horrendas e envidraçadas torres de conjuntos e salas comerciais. Esse descalabro já ocorreu com inúmeros palacetes e mansões de tradicionais e hoje falidos clãs que habitavam os Bairros Bela Vista, Higienópolis, Moinhos de Vento e Floresta.

Eu escrevi acima que o poder do dinheiro dos incorporadores adquirira e demolira todas as casas da rua onde moramos. À exceção de uma: a de Dona Margarida, simpática nonagenária e de forte personalidade. Por meu alvedrio assim a nominei em razão de que em todo o dia 20 de fevereiro sua casa, na esquina de minha rua com a Avenida Beira-Mar, amanhecia enfeitada com coloridas guirlandas e balões. Era seu aniversário e o dia onomástico de Santa Margarida de Cortona.

Dona Margarida, indiferente ao ranger de dentes dos incorporadores e possivelmente de não poucos de sua prole, bravamente resistiu às ofertas milionárias por sua casa de veraneio.

Resistiu!

Na quarta-feira, 9 de dezembro, um tétrico tapume encobria cada telha arrancada, cada tijolo que tombava, cada “táuba” que caía. Destruíram aquela que fora o sonho de uma então jovem mulher para, “em nome do progresso” erguer o prédio com a vista mais privilegiada: o nascer do sol sobre as águas do oceano.

Nos futuros e ad aeternum 20 de fevereiro, Adoniran Barbosa, Mato Grosso e Joca estarão sentados a mesas de um jardim celestial enfeitado por centenas de balões, erguendo copos de dourada e espumosa cerveja e cantando à feliz aniversariante, envolta por multicoloridas guirlandas, sem mais a dor em saber que o último bastião da Avenida Ubirajara resistira bravamente até o final de um ano que jamais a Humanidade há de esquecer.

“E pra esquecer nóis cantemos assim
Saudosa maloca, maloca querida
Dimdim donde nóis passemo os dias feliz de nossa vida…”

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