Ela trocou a viagem de lua de mel por uma geladeira – Sergio Agra

Ela trocou a viagem de lua de mel por uma geladeira - Sergio AgraNa coluna publicada no dia 6 de maio último, sob o título de “Epitáfios”, abordei não sem alguma dose de humor a excentricidade dos obituários publicados nos jornais pelos familiares ou amigos dofinado. Alguns, criativos, outros simplórios, como ingênuo fora o falecido, e tantos mais com um toque de afetação ou de comicidade até. De maneira geral o defunto citado nos necrológios, num passe de mágica, se transforma em pessoa amável e generosa, culta e engenhosa, frequentadora diária da missa das 6h45mim; após dizer confissão e comungar passava a sacolinha do óbolo para a paróquia.

Na realidade,teria sido essa uma pessoa “do bem”, devota e cumpridora dos mandamentos de sua crença religiosa? Teria sido verdadeiramente bom pai, mãe dedicada, fiel marido, leal esposa, rica em talentos artísticos, culinários, botânicos e musicais? Fora a finada exímia na arte do crochê e do ponto-em-cruz?E o mortinho fora verdadeiramente imbatível decifrador de charadas? Por que cada um ao partir leva na bagagem biografia excessivamente seráfica? Por que é lembradacomo um “Einstein”, uma Madame Curie, um “Mozart”, uma “Maria Callas”, um “monge budista” ou uma “madre Teresa de Calcutá”?

O obituário(tal defensoria pública para assuntos mortuários, dispensados, porém, os nababescos salários e seus penduricalhos) pareceter como função fundamental advogar perante o Todo-Poderoso (Não! Este é o Supremo Deus-Pai, Divino, Adonay, Javé,Jehovah,AllahOlorun ou Oxalá, jamais o corrupto STF!) a imediata obtenção do habeas anima tuame do permitingressum(alvará de entrada) para os Céus(Paraíso,Shamayim, Jannah, Orum,Svarga, Samsara, Takama-ga-hara).

Dias destes, no entanto, li o elogio fúnebre de centenária senhora em que os familiares, de forma leve, descontraída, transmutaram a austeridade que, via de regra, caracteriza um obituário para uma colorida mesa de brigadeiros, beijinhos, bichos-de-pé, cajuzinhos, kake pops e lembraram a elegância, a cultura e, sobretudo, o perfil de incentivadora cultural e visionário damatriarca.

Assim se inicia a nota:

“Dona da primeira geladeira elétrica da cidade, Alvarina I. morreu aos 107 anos, em sua residência”.

A seguir é descrito o percurso da referida senhora – formação musical em Instituo de Belas Artes,promoteur de saraus literários e musicais; seu matrimônio, os filhos, netos e bisnetos.

O surpreendente ali relatadofora o fato de, quando noiva, ela e o futuro esposo terem feito economia para a tão sonhada viagem de luademel. No entanto, ao saberem da possibilidade de compra das geladeiras elétricas norte-americanas, renunciaram ao passeio em favor da aquisição do eletrodoméstico.

O obituário, ipsis litteris, finaliza com a narrativa da aquisição daquela novidade:

“Após uma longa empreitada – três meses de navio para ancorar no Rio de Janeiros e mais um bocado de dias para desembarcar em Bagé –, o utensílio, o primeiro da cidade, finalmente chegou. As pessoas faziam fila na casa para conhecer a “tal” da geladeira”.

Na roda dos vinhos do fim de semana muito dos confrades comentaram o inaudito obituário. Um ou dois entenderam como pedantismo a forma com que fora utilizada a coluna de jornal de grande circulação para, afinal de contas, noticiar o passamento de uma provecta senhora nos seus 107 anos. Os demais, inclusive eu, discordamos, vez queo registro nada mais havia sido do que uma homenagem póstuma através de palavras que ao fim e ao cabo lembravam não o lado trágico e sombrio da morte, a mesa repleta de coloridos e saborosos quitutes e refrescos ao som das sonatas ao piano para quem soube com sabedoria brindar à vida e os momentos de alegria que esta tem ainda o condão de oferecer.

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