O pior cego – Sergio Agra

Só o inimigo não trai nunca.

Amar é ser fiel a quem nos trai.

O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca.

Nelson Rodrigues (1912 – 1980)

O pior cego - Sergio AgraHá quinze anos, recém-chegado a Capão da Canoa (Deus meu! Já se passou tanto tempo assim? Será que a Vara de Execuções esqueceu meu direito à progressão de pena?), em razão de minha formação em Direito, fui convidado a atuar na Secional do Tribunal de Mediação e Arbitragem. Em minha primeira participação da reunião mensal dos Mediadores teci o comentário de que nesta cidade todos conheciam o rabo sujo de muitos. Jamais esqueci a sentença de um dos conciliadores: – “Aqui nunca foi diferente da tua Porto Alegre. Por ser a aldeia pequena a porta do caboclo fica em frente à tua!”. Repliquei: – Pelo que percebi a porta também fica ao lado e acima da tua!

O colega de arbitragem estava coberto de razão. Por conviver daquela ocasião em diante num microcosmo adquiri um senso de observação mais acentuado sobre a condição humana, como diria Nelson Rodrigues, descobri a vida como ela é! Não porque, até então, eu fosse um mentecapto, um alienado. Muito mais por habitar uma cidade com um milhão e meio de habitantes, em que o corre-corre é incessante, o tempo é exíguo e as distâncias mais longas, a atenção inteiramente voltada para os prazos processuais, para audiências nas mais distintas comarcas, restando os fins de semana para curtir os folguedos com o filho único. O fato é que, sejamos sinceros, o ócio faculta ao exercício de nossa postura e das atitudes comportamentais dos outros.

Como dissera o caboclo medianeiro naquela longínqua reunião, aqui não é diferente de Porto Alegre, de São Paulo ou de Paris. Apenas vi (e como eu vi!!!) e vivi mais próximo às hipocrisias, onde – pobres de espírito! – usurpam teu conhecimento, tua cultura e teu intelecto para que o consolo da gorjeta das luzes dos holofotes amenizem sua pequenez.

Distanciei-me com os prolegômenos do que realmente desejaria escrever: – a vida como ela é. Com a licença do “Anjo Pornográfico”, Nelson Rodrigues, eu traria alguns de seus temas, fundamentado no que povoa o microcosmo em que hoje habito: a traição amorosa disfarçada pelo narcisismo infantil do homem que diariamente se exercita na área da piscina cultivando a barriga de tanquinho e os músculos vistosos para a mulher, que com toda a certeza não é a gorda e baixinha, com um filho em cada mão, o admirando com sincera idolatria; da relação conjugal em que ele, cego pela paixão, lambe o chão daquela que acoberta o objetivo mercenário pelo capital e pelo patrimônio do companheiro.

Como eu disse acima, “desejaria escrever”. A crônica se alonga e antes que se torne enfadonha, fica a promessa de, para mais adiante, algo mais instigante.

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