Reflexões sobre um pequeno espólio

O inverno, tal tirânico e despótico governante que ambiciona instalar-se ad perpetum no trono do poder, estranhamente se recusa dar passagem às luzes e à leve brisa primaveris. Em dias como esses, de uivantes vendavais que vergam até mesmo os robustos umbus e as vigorosas araucárias e paineiras, e carregados de plúmbeas nuvens que ameaçam se arrojar como cachoeiras sobre as vilas e cidades, desmoronando montanhas, inundando vales e campos, nada mais salutar do que se desfazer do peso que carregamos em nossas mochilas e, por que não, elas próprias, que sequer as levaremos no dia da grande viagem?
 
Non, rien de rien
Non, je ne regrette de rien,
Ni le bien qu'on m'a fait, ni le mal, tout ça m'est bien égal.

 
Quando alguém parte deixa, na grande maioria das vezes, ao encargo dos que ficam gavetas, baús e, até mesmo, os mais recônditos cofres e escaninhos a serem abertos e “inventariados”. Os souvenires que colecionara por uma existência inteira – flâmulas de clubes e seleções de futebol, coleções de moedas, de caixinhas de fósforos e álbuns de figurinhas, time de botão “puxador”, cartões postais de lugares que já nem mais despontavam na memória, bilhetes de uma antiga namorada que jurara eterno amor, mas, ao primeiro circo que se instalara na cidade, fugira com o intrépido domador de leões – são impiedosamente recolhidos, triturados ou incinerados na fogueira nos fundos do quintal.
 
Non, rien de rien
Non, je ne regrette de rien,
c'est payé, balayé, oublié, – je me fous du passé.

 
Num desses fins de semana, em que o vento gemente fazia tremular as imensas janelas da varanda, abarrotei três sacolões que, somados, quase alcançaram os 30 quilos. Os convites para as festinhas em comemoração aos Dias das Mães, em forma de imensos e muito mal recortados corações em cartolina vermelha, os cadernos de linguagem, matemática e estudos sociais, os boletins de notas das sabatinas do Grupo Escolar e o certificado de conclusão do primário, as medalhas e os diplomas conquistados nas competições esportivas na ACM, programas de teatros, musicais, óperas e concertos, retratos de antepassados que sequer sei de quem se tratavam, telegramas e mensagens de felicitações pela colação de grau, por cada aniversário, três resmas abrigando cópias do Século XX, datilografadas, de petições, contestações, recursos, contos, crônicas e – não duvidem! – poemas de um coração ingenuamente apaixonado (perdão, Poetinha, por minha insana ousadia. Rasguei-os milimetricamente!), jazem, hoje, em alguma usina de reciclagem de resíduos sólidos.
 
Avec mes souvenirs, j'ai allumé le feu,
mes chagrins mes plaisirs, je n'ai plus besoin d'eux.
Balayés mes amours, avec leurs trémolos,
balayés pour toujours je repars à zéro

 
Não logrei concluir o planejado. Calculo que ainda restem outros vinte quilos a ser eliminados: duplicatas, carnês do IPTU, IPVA, seguro do automóvel, declarações do Imposto de Renda. Assalta-me ainda a dúvida se devo dar o mesmo fim aos recortes de meus artigos publicados em jornais, placas e troféus conquistados em Prêmios Literários e Festivais de Teatro, como ator.
 
Non, rien de rien
Non, je ne regrette de rien,
ni le bien qu'on m'a fait, ni le mal, tout ça
m'est bien égal.

 
Apesar da sutil feição sombria do texto, não aspiro (ou há um recôndito desejo?) ser portador do “passaporte” da viagem em data que se creia muito próxima.
De qualquer modo, decidi não mais guardar a infinidade de souvenires que durante a estada me foram caros para que terceiros os rasguem e os queimem sem dó e piedade. Eu mesmo o estou fazendo. Com algum aperto no coração, pois desapegar-se não é lide de tão fácil obra.
Não pretendo deixar a quem fica este abrolhoso (ou indiscreto?) compromisso: vasculhar gavetas, baús, cofres e escaninhos onde se pudessem encerrar até mesmo os segredos mais impenetráveis de uma existência. Quando muito, ficarão meus livros e CD’s de óperas.
Estes sim, de peso bem mais suportável. 
 
Non, rien de rien
Non, je ne regrette de rien,
car ma vie, car mes joies,
aujourd'hui ça commence avec toi*

 
* Non, Je ne regretted rien – Michel Vaucaire e Charles Dumont.
Não, nada de nada…/Não, não me arrependo de nada…/Nem o bem que me fizeram/ Nem o mal – tudo isso tanto me faz!/ Não, nada de nada…/Não, não me arrependo de nada…/Está pago, varrido, esquecido/ Não me importa o passado!/ Com minhas recordações/ Acendi o fogo/ Minhas mágoas, meus prazeres/ Não preciso mais deles!/ Varridos os amores/ E todos os seus temores/ Varridos para sempre/ Recomeço do zero./ Não, nada de nada…/
Não, não me arrependo de nada…/Nem o bem que me fizeram/ Nem o mal, tudo isso tanto me faz!/ Não, nada de nada…/Não, não me arrependo de nada…/Pois minha vida, pois minhas alegrias/ Hoje, tudo isso começa contigo!.

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