Um bonde chamado amizade

Recebi, há alguns dias, e-mail de um dileto amigo com inúmeras fotos, desde a sua fundação, da Companhia Carris de Ferro Porto-alegrense e de seus nostálgicos bondes. Confesso que a remembrança resultou-me em melancolia. Das histórias que vivi nos “amarelinhos” uma sobressaiu-se, de imediato.

“Amigo é o que nos procura,
Simplesmente por sentir,
Prazer, descanso, ventura,
Em nos ver e nos ouvir.”

“Meleninha”, indiático e missioneiro, parido sob os caprichos do Minuano e das intempéries que rasgavam as coxilhas, transformado homem ante os confrontos com os mistérios das noites de plenilúnio que somente as plagas de São Miguel poderiam gerar, não resistiu à emoção. O ex-motorneiro do bonde Gasômetro jamais imaginara que, trinta e cinco anos mais tarde, os dois moleques pingentes – um, hoje arquiteto, o outro, escritor/advogado – encontrassem a casa de adobe, no cimo do Morro da Embratel.

 “Aconselha-nos se erramos,
Sem humilhar-nos porém.
E sempre que precisamos,
Ao nosso encontro ele vem.”

O bonde, invariavelmente, estava atrasado. Isto pouco importava. Eram tempos outros, do Long-Play de vinil, da Bossa Nova, dos Festivais da Record, da saia godê e da brilhantina. “Meleninha” buscava compensar a demora imprimindo maior velocidade ao elétrico. Preocupava-se com os dois amigos a seu lado – Sergio Luiz e eu – para que chegassem a tempo da primeira aula. O colégio, o Farroupilha, vivia seu derradeiro ano no velho casarão da avenida Alberto Bins. A disciplina, o português; a poesia, o tema:

“Tem muito dos nossos gostos.
Das nossas opiniões.
E se divergem os gostos.
Concordam os corações.”
     
 “Meleninha” apreciava as árias de Verdi e Puccini. Entoava-as para divertimento nosso. Idolatrava Enrico Caruso, a quem ouvia, nos domingos de folga, nos “bolachões” de 78 rpm  na sua pequena vitrola. Jurava-nos que ainda viveria para assistir, ao vivo, um grande tenor.
O livro aberto, o poema fluía ante nossos olhos e mentes atentos,

 “Quando um dia, inesperada.
Uma dor nos espezinha,
Embora bem disfarçada
Num instante ele adivinha.”

O bonde, rangedor, voava sobre os trilhos da avenida Osvaldo Aranha. O motorneiro entoava Bella Figlia Dell’Amore, da ópera Rigoletto. De repente, o estrondo! Labaredas dominaram a “caixa” do acelerador e dos freios do elétrico. Instintivamente, dirigimo-nos para a porta a fim de saltarmos com o veículo em movimento. “Meleninha” largou de seus cuidados e, no derradeiro instante, puxou-nos pela gola das jaqueta.- “Este foguinho mixuruca eu mesmo dou conta!” – e pôs-se a abafar furiosamente as fagulhas com o seu quepe.

“Com uma palavra breve.
E sábia, realiza o encanto.
Eis que já sentimos leve.
O que nos pesava tanto.”

Alcides dos Santos, o “Meleninha” ainda trazia os olhos marejados quando embarcou no automóvel de seus dois antigos passageiros, rumo às Missões. Iria beijar os campos natais, estendido em planuras escampas, ondulados em suaves coxilhas.

“Na hora difícil e indecisa.
Em que descremos de nós,
Só ele nos valoriza.
Com sua calma e sua voz.”

Sob a noite estrelada, no cenário das ruínas de São Miguel, ele comoveu-se ante a sublimidade do tenor Jose Carreras.

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