Viajar – por Sidão Tenucci

Para os surfistas, o ato de viajar sempre terá a ver com liberdade, felicidade e busca do desconhecido. Cometi o maior erro que um viajante pode cometer: planejei demais. Aí, fiquei. Prestem atenção: estou falando de uma viagem mais longa, ansiada e ainda não efetivada, não do bate-e-volta para o Guarujá. Sim, a mente imobiliza.

A essência da viagem consiste em não se saber exatamente aonde nem como, nem por quê. Planejar demais te aprisiona na mente, quando viajar é exatamente o espírito querendo alçar vôo, metamorfoseando-se em liberdade.

Pensar demais paralisa, quando a natureza óbvia da viagem é o movimento. Pensar é o antônimo de “ir”. Preocupar-se é o inverso da Fé. E sem fé não se viaja. Sem viagem não se vive (a viagem é o alimento para o movimento).

Viajar é ir para lugares que não se queria, a princípio, e aprender imensamente com o que se queria evitar. Viver os detalhes da imensidão, do Todo.

Viajar é impulso de ser o que não se é (para poder voltar a realmente ser). De se permitir vestir outros corpos, usar outras partes do seu eu e de outros cérebros, rasgar sorrisos diversos numa face que você mesmo não reconhece naquele espelho sujo de Bangkok numa manhã cinzenta de poluição, na rua fedendo a peixe podre que vem dos rios que atravessam a cidade como um ferro em brasa contaminado atravessa um estômago doente, terminando por cauterizar alguns vermes ao mesmo tempo em que criam outros.

Viajar é convidar a liberdade para morar conosco, dentro de um barco sem cabine à deriva no Mar Cáspio, ou com os pés dentro d’água de um rio de piranhas bem alimentadas. É reaprender a respirar.

É olhar atentamente para um pedaço de plástico amarelo, 100% no presente, sem a mínima distração, integrado no universo, como o mendigo que vi deitado no chão sob as árvores de um parque da metrópole. Viajar é despir essa pele e essa identidade sem saber qual será a nova e se haverá. É não ser nada, não ser ninguém.

É respirar o ar dentro de uma brisa cada vez mais forte no outside de Mokuleia, no Hawaii, a ponto de expandir levemente o pulmão inativo (junto com a alma); é estar só numa ilha sem nome em Sumatra, ou na costa selvagem e inexplorada de uma África do Sul sem preconceitos, esperando e sabendo que é o prenúncio de uma tempestade.

Amar a tempestade. Receber os pingos no rosto como a água benta que são. É abençoar o instante e ser abençoado por ele. É saber que naquele momento você vai ter que se encontrar com Deus na marra. E que do encontro vai sair alguém melhor, ou não sairá ninguém.

Viajar é saber que aquilo é o que você mais esperava nessa vida, tinha medo, não sabia, e que pode ser o fim dos seus dias, dando início a uma eternidade diversa. Ao querer tudo sob o meu controle erro pelo menos duas vezes: primeiro por perder intencionalmente o sabor agridoce da imprevisibilidade; e segundo por ter a pretensão de acreditar que temos o controle de qualquer coisa, qualquer momento, qualquer sonho, qualquer sentimento que possa nos acossar numa noite fria de dúvidas insolúveis embaixo de um cobertor de enganações previsíveis. Ah!, o alívio de não saber que horas são; que país é esse onde me encontro e me perco (quem se acha está perdido… ), onde ainda não inventaram a eletricidade nem o stress elétrico, onde os Homens não têm fio.

Que noite é essa que nunca termina? Que mulher é essa que não fala, mas empresta a sua língua de linguagem universal? Que corpo é esse que não explica, mas simplesmente exala?

Perdido entre as marés de gentes de uma rua de Nova Delhi me encontro numa esquina em forma de um fazedor de yogurte sentado no meio-fio, ou de um empurrador de riquixá vesgo e sem uma orelha babando pelo canto direito da boca a viscose de uma existência de empurrar.

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