A culpa é toda das mães – Sérgio Agra

Sergio Agra

A CULPA É TODA DAS MÃES

(Gelny Agra, mãe do colunista)

Neste segundo domingo de maio — de sol radioso ou de chuvas e ventos intermitentes, não importa! — o dia será lindíssimo. Não será só um domingo cristão e sim um imenso domingo universal em que Dona Gelny, vencidas as antigas angústias ou ansiedades, aguarda o meu preito de gratidão pelo seu dia.

Não obstante, desde cedo há de estampar em seu semblante o sorriso sardônico, se perguntando, “O quê esse pândego irá me aprontar desta vez?”.

Ela como toda mãe conhece desde sempre o filho até pelos humores, disposta a se cumpliciar com as artes mal ajambradas do moleque que lhe presenteava, para amenizar as subversões à ordem por ela estabelecida, com corações de coloridas cartolinas muito mal recortados ou do adulto a estender-lhe o caprichoso buquê de orquídeas de que tanto gostava. Esta sempre fora a razão da alegria e do sorriso, ainda que contidos, em saber, hoje num outro plano, da personalidade polêmica, dos escritos em prosa e versos sarcásticos, das calças desbotadas, dos pecados rasgados do filho pródigo que mesmo homem sisudonunca esmaeceu.

Perdoem-me os freudianos, os junguianos, os lacanianos, os kleinianos, mepoupem os seguidores, diletantes ou não, das psicoterapias breve, focal, cognitivo comportamental ou psicanalítica, mas não é somente da mãe a culpa de tudo!

Acaso conhecem imagem mais piegas, lamecha contida na letra da canção “mamãe, mamãe, mamãe… eu te lembro o chinelo na mão, o avental todo sujo de ovo” ou nos versos “ser mãe é padece num paraíso”, de autoria do imbecil Coelho Neto que jamais pôs os pés numa cozinha e ignorava o festival de farinha de trigo turvando a vista, poças de pomarola/ketchup, cascas de ovos e de batatas emporcalhando piso, pratos, panelas e formas jogados no mar de espuma do detergente na cuba da pia?…

Sob outra ótica, vocês em algum momento não olharam para suas mães e, apavorados, viram bem à sua frente, por ínfimos instantes, não mais do que milésimos de segundos, a transmutação do demônio, com chifrezinhos, rabo e tudo o que caracteriza o capeta? Não sejam hipócritas! Confessem! Claro que vocês viram, ainda que, após, tenham rogado perdão ao Todo-Poderoso e ameaçado incendiar a casa ao acender uma vela para cada santo.

Toda a mãe em nível inconsciente transfere ao filho tudo o que por um leque de razões não realizou ou deixou de ser. Qual a mãe que algum dia não tenha vislumbrado que o rebento seria um virtuoso concertista ao piano, violino, violoncelo ou flauta transversal? Dona Gelny, por exemplo, matriculou-me num curso de gaita/acordeão/sanfona, ouharmonika — como se orgulham die deutschen, seus inventores — com aulas na primeira hora da tarde dos sábados. Certa feita a professora recebeu a inesperada visita de amiga que desconhecia decerto a serventia e uso do aparelho telefônico. Apontando para uma página da partitura a musicista instruiu-me de que a estudasse, ela logo, logo retornaria. O “logo, logo” para o basbaque do aprendiz de cordeona durou até às 6 da tarde, no nhéim, nhéim, nhéim daquele tétrico instrumento.. Após a fatídica tarde daquele sábado a humanidade pôs-se a salvo das notas dissonantes do desastrado sanfoneiro.

A mãe de meu filho também passou por seus vislumbres: entendeu estar à frente de um Daniel Barenboim, de um Arthur Moreira Lima, de um Nelson Freire ou de um João Carlos Martins. A sala de estar do apartamento adquiriu por essa razão um novo componente: o piano alugado. O moleque não tardou em dar o troco: ganhara da avó paterna a primeira de tantas guitarras das quais até hoje, só por “vingança”, nem pai ou mãe (isso que ele integra uma banda de rock nas horas de lazer) ouviu uma nota sequer.

Tal sorte não teve uma menina da vizinhança. A “mãe-demônio” fantasiara que a fedelha pudesse ter os mesmos talentos de Ana Maria Botafogo ou de Isadora Duncan. Na festa de aniversário dos nove anos da guria a megera aparamentou a filha com espartilhos, tutu, collant, meia-calça, sapatilhas, penteados e acessórios para que a pirralha executasse para o constrangido bando de convivas um pequeno trecho de “O Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky. Na realidade o que se assistiu — a infeliz ex-futura bailarina havia esquecido a coreografia — fora “A Pata-choca do Banhado”.

Há quem argumente: as crianças de hoje são voluntariosas, elas sabem o que querem, sobretudo o que não desejam para si. Respondo: — Desde que esses pequenos não sejam vítimas indefesas já no primeiro sopro de vida da “mãe-dragão”, “tipo” aquela que respira por eles, fala por eles come por eles, canta por eles e até sentem a dor de uma tropicada no dedão do pé contra a quina do móvel que deveria ser tão e só deles.

Anoiteceu enquanto eu escrevia esta homenagem para Dona Gelny. Ao erguer-me executo um movimento de relaxamento dos músculos do pescoço e dos ombros. Vou até a sacada. Encanta-me o céu hoje marchetado de estrelas. Ouço, vindo do Firmamento, o som que lembra o estalar da língua entre o palato e os dentes incisivos centrais superiores, seguido pelo riso discreto de minha mãe, como ela sempre fazia, após fechar o quarto onde me punha de castigo ante uma diabrura minha: — “Agora não adianta, não torci o pepino quando pequeno; ele não vai mudar. A culpa é toda minha!…”.

Não, mãe, não restou culpa tua. Não toda!  E se me olhares com mais atenção hás de perceber que cresci. Tomei juízo. Não totalmente! Do moleque traquinas, do rebelde adolescente e do jovem pândego e boa-vida pouco restou.

Digamos que uns 70%!

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